#Resenha #MotivoDeReflexão
"Logo depois da votação do impeachment de Dilma Roussef na Câmara dos Deputados, cheguei em casa e peguei o único Hemingway da prateleira. Não sou um grande conhecedor de Hemingway, nem mesmo um profundo admirador da sua literatura. Mas foi um ato imediato, impensado. Larguei inacabado o romance do português Lobo Antunes que tinha me acompanhado na viagem, uma história engenhosa de um homem velho entre o delírio e a vida em seus dias finais, e agarrei uma narrativa solar. Mas não era a literatura que eu buscava.
Amanhã há de ser outro dia...
Há quem veja agora apenas uma onda conservadora
avassaladora e o silêncio. Mas há rebeldia por toda parte.
Seremos algum dia capazes de gerir nosso próprio destino ou viveremos eternamente à sombra da CASAGRANDE e obedecendo os ditames da GLOBO?
Seremos algum dia capazes de gerir nosso próprio destino ou viveremos eternamente à sombra da CASAGRANDE e obedecendo os ditames da GLOBO?
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Amanha-ha-de-ser-outro-dia/4/36230
(...) Apesar de você / Amanhã há de ser /Outro dia
Eu pergunto a você / Onde vai se esconder /Da enorme
euforia
Como vai proibir / Quando o galo insistir /Em cantar
Água nova brotando / E a gente se amando / Sem parar
Chico Buarque, Apesar de você
"Logo depois da votação do impeachment de Dilma Roussef na Câmara dos Deputados, cheguei em casa e peguei o único Hemingway da prateleira. Não sou um grande conhecedor de Hemingway, nem mesmo um profundo admirador da sua literatura. Mas foi um ato imediato, impensado. Larguei inacabado o romance do português Lobo Antunes que tinha me acompanhado na viagem, uma história engenhosa de um homem velho entre o delírio e a vida em seus dias finais, e agarrei uma narrativa solar. Mas não era a literatura que eu buscava.
Depois de algum tempo, entendi que eu buscava mesmo
era a companhia de Hemingway, como a de um amigo mais velho que talvez me explicasse
o que estava acontecendo. A verdade é que nos últimos dias tenho pensado muito
na vida de Hemingway que, na verdade, é muito parecida com a maior parte da
história dos homens de todos os tempos: um indivíduo que saltou de uma guerra
para outra, de um desastre para outro até desembocar em um suicídio,
ironicamente repetindo a atitude do pai. Exceção mesmo só foi o sucesso
literário e o fato de que, no meio tempo entre tudo isso, até teve a chance de
viver em uma Paris que faz inveja a todos nós.
Talvez se possa dizer que Hemingway era exímio em
estar ao lado do perigo: afinal, alistou-se na Primeira Guerra e foi voluntário
na Guerra Civil Espanhola contra os franquistas. Mas a verdade é que só viveu
intensamente os problemas do seu século. Ele não podia, simplesmente, pedir que
o mundo não fosse o caos de sempre para que ele pudesse construir uma obra
literária, assim como compreendeu, especialmente na Espanha, que é preciso
descobrir o lado certo da luta.
Como Hemingway, a verdade é que hoje eu me pego a
pensar nas várias pessoas que admiro e devo reconhecer que suas vidas foram
cheias de percalços, na maior parte das vezes saltitando entre guerras, prisões
e regimes autoritários. Não é por acaso que o gênio Galileu foi o tema de uma
das peças mais emblemáticas de Brecht: afinal, não foram poucas as vezes que a
ignorância e a força silenciaram um avanço da humanidade. Se não faltaram
humilhações e dissabores pessoais, também é verdade que as ideias de Galileu
venceram, a exemplo do que aconteceu várias outras vezes. Os gregos, que tanto
admiramos, condenaram Sócrates à morte, mas antes lhe ofereceram a chance de
renunciar ao que pensava, o que ele não aceitou. Chaplin e boa parte dos mais
relevantes artistas radicados nos Estados Unidos durante o século XX foram
caçados pelo marcartismo, numa irônica repetição das Bruxas de Salém. Alain
Turing, o gênio da matemática e da computação, lutou contra os nazistas em nome
da liberdade, mas não teve ele mesmo liberdade: foi perseguido e castrado
quimicamente na moderna Inglaterra, poucas décadas atrás, por ser homossexual.
Graciliano, talvez o autor mais importante da minha formação literária inicial,
foi preso e padeceu todo o tipo de arbitrariedade. Guimarães Rosa teve o
desprazer de estar na Alemanha nazista, onde chegou a ser detido depois de
ajudar centenas de judeus a imigrar. Alguns dos historiadores franceses mais
marcantes do século 20 foram também soldados ou prisioneiros. Mesmo o homem que
me ensinou a ser historiador, esteve ele mesmo em campos de concentração na
Segunda Guerra, desenraizou-se da sua própria terra para cair no Novo Mundo que
algumas décadas depois lhe reservaria uma ditadura militar e uma prisão. Ele
não teve como pensar a vida à base de metas e planejamento. Ao contrário disso,
em um mundo sem backup e nuvens, mais de uma vez teve que picar textos prontos
para evitar que caíssem nas mãos da repressão, várias vezes voltando à estaca
zero da sua produção, como se fosse Sísifo.
Tenho pensado muito em tudo isso porque acredito que
para nenhum outro grupo o Golpe de Estado que está acontecendo é pior do que
para a geração que, como eu, está chegando hoje aos 40 anos. Não tenho dúvidas
de que é algo terrível para aqueles que viveram a repressão da última ditatura
e conheço relatos muito tristes de pessoas que começam a ter reminiscências
desse tempo. No entanto, para aqueles que estão próximos dos 40 e não tiveram
pais ou pessoas próximas diretamente atingidos pela repressão, encarar o avanço
assustador do conservadorismo, aqui coroado com um golpe parlamentar muito
semelhante a de outras partes da América Latina, é difícil de assimilar por
falta de repertório.
Afinal, nós somos a exceção da história da humanidade:
excetuando os anos finais da Ditadura começada em 1964, quando éramos muito
novos para compreender o que estava acontecendo, a nossa vida foi toda
percorrida em um regime democrático. Cambaleante, sim. Excludente, sem dúvida.
Mas no qual as regras do sistema representativo foram, de modo geral,
respeitadas, apesar de um Proconsult aqui ou da deposição de Jackson Lago do
governo do Maranhão em pleno governo Lula. De toda forma, não aconteceu nada
parecido como esta tentativa de inversão de um resultado eleitoral, quando o
programa de governo derrotado está prestes a ser implementado por via de uma
espécie de “indiretas já”. Ao contrário disso, os resultados eleitorais, ao
menos no plano nacional, foram não só respeitados, como é inegável uma melhoria
do país e avanços à esquerda em quase todas as áreas, mesmo que sempre
insuficientes para o nosso gosto. Da mesma forma, nunca vivenciamos
pessoalmente uma guerra, a não ser nas redes sociais. Não choramos a dizimação
do país por uma peste ou desastre natural de enormes proporções.
Mais uma vez, somos a exceção da história da
humanidade. Vivemos todos nós uma espécie de ilusão de que as nossas histórias
pessoais poderiam ser planejadas, sem um sacolejar da história que talvez
levasse as nossas expectativas pessoais para o segundo plano. Mas parece que
agora as coisas mudaram e talvez tenhamos que cada vez mais pensar naqueles que
admiramos e passaram por adversidades como as que estão nos obrigando a viver
agora.
De relatos de amigos a resumos que li sobre a recente
entrevista do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, para a imprensa alternativa
em São Paulo, o que mais me chamou a atenção foi a incompreensão dele ao nosso
sentimento de “fim da história”. Apoiado em tantas lutas, Mujica só lembrava a
todos nós que nenhuma vitória ou derrota é definitiva. Por isso, venho
insistindo aos meus companheiros de geração: vamos lutar até o fim, mas, se o
golpe prevalecer, vamos ter que encarar as consequências que virão de frente,
como fizeram os que vieram antes de nós. Essa será a nossa vida.
Um tempo de reavaliação
Passados treze anos de administração federal do
Partido dos Trabalhadores, a experiência mais próxima de um projeto de esquerda
que já tivemos, o governo está próximo de cair sob os clamores de um discurso
político dos mais rasteiros. A miséria política brasileira não é um discurso só
de ódio ao PT, mas à política em geral.
A ideia de que todos os políticos de hoje são iguais
remete a um provérbio muito popular do Império do Brasil que dizia que não
havia nada mais parecido com um Saquarema (conservador) do que um Luzia
(liberal) no poder. Certamente, não se trata de uma doença dos brasileiros em
não identificar as distinções entre os projetos políticos que os partidos
representam. Este é apenas o sintoma de algo mais profundo.
A respeito da aparente indistinção entre Conservadores
e Liberais no Império do Brasil, certamente uma das análises mais inteligentes
é do historiador Ilmar Mattos, no clássico O Tempo Saquarema. Ilmar retoma o
provérbio – de que não nada mais parecido com um Saquarema do que um Luzia no
poder – para mostrar que isso era concretamente falso, mas que a percepção que
a população tinha desta indistinção era perfeitamente compreensível.
Desse modo, concretamente, os Liberais e Conservadores
defendiam projetos políticos bem distintos. Entre outras coisas, os Liberais
defendiam a proeminência do Parlamento, como a maior expressão do sistema
representativo. Já os Conservadores – e sobretudo, a sua parcela Saquarema –
não abriam mão de que o monarca fosse o topo da pirâmide de uma sociedade muito
mais hierarquizada do que a almejada pelos Liberais. Ao contrário dos Luzias,
os Conservadores aceitavam subordinar a liberdade da sociedade ao imperativo da
ordem. Como lembra Mattos, uma das referências desses conservadores era Hobbes,
o autor de O Leviatã.
Até este ponto, a análise não é novidadeira. São
conhecidas as diferenças entre liberais e conservadores no Império. A inovação
de Ilmar é demonstrar porque eles eram percebidos pela população como iguais.
Para Mattos, desde o final da década de 1830, os Saquaremas – uma facção dos
Conservadores instalados na região cafeeira perto da Corte – conseguiram moldar
os instrumentos do Estado à feição dos seus ideias. Em outras palavras,
tornaram hegemônico o projeto político Saquarema, de forma que suas ideias
também fossem compartilhadas por todos os braços institucionais – de tribunais
a professores. Nessa perspectiva, defende Mattos, os Liberais podiam estar à
frente dos ministérios, serem maioria no Parlamento, mas jamais conseguiam
implementar o projeto que defendiam. Poderiam ser feitas algumas mudanças, mas
a alma do Estado, o seu sentido continuava a ser Saquarema. O exemplo magistral
dessa subordinação política e intelectual dos Liberais aos Saquaremas está no
chamado golpe da maioridade: sem forças para recuperar a direção do Estado, os
Liberais foram justamente apelar a um menino para que assumisse a Coroa, sob o
argumento que só o monarca poderia trazer a paz ao Império após a sequência de
conflitos da Regência. Um beija-mão que cobrou seu preço por quase 50 anos.
Durante anos, muito antes da situação atual, penso nas
similitudes entre o que ocorreu com os Liberais no século 19 e os limites da
administração petista nesta última década. Guardadas as devidas proporções,
penso que o enquadramento é muito similar: o Partido dos Trabalhadores chegou
ao poder central, fez reformas e políticas importantes, mas jamais chegou perto
de mudar a lógica da dinâmica política e econômica que foi moldada no início da
Nova República até aqui.
Isso não quer dizer que não exista diferenças entre o
PT (e a esquerda) e o espectro mais à direita da política brasileira. Bastou
uma semana do governo Temer para deixar isso bem claro: um ministério sem
mulheres e negros, anúncios de renúncia do SUS como um direito universal,
cobranças de mensalidades em universidades públicas, fechamento de embaixadas
na África, entre outras barbaridades. No entanto, é preciso reconhecer que, no
campo econômico, todas as políticas de inclusão social estiveram subordinadas
aos limites impostos por uma economia de matriz liberal. Isso, em tempo algum,
foi de fato enfrentado. Nem os juros astronômicos da Selic (com exceção dos
dois primeiros anos do governo Dilma), tampouco a legitimidade da dívida
pública, cujo o pagamento é a maior transferência de renda do Brasil. Aceitar
esse jogo foi reafirmar a subordinação da sociedade à garantia dos direitos de
propriedade privada e do rentismo acima de qualquer coisa. Isso foi decisivo
para uma reforma agrária quase inexistente, aceitar o papel do Brasil como um
fornecedor de comodites e não estabelecer um plano claro de desenvolvimento
nacional. Não por acaso, alguns críticos ironizavam que o plano econômico do PT
era uma continuidade do que fora feito no governo FHC.
A Educação, um pecado capital
No plano social, a educação teve avanços, mas não se
impediu que a lógica de mercado continuasse a limitar a grande virada
necessária. Não se trata apenas de incluir mais e mais pessoas na escola, do
ensino fundamental ao superior, ainda que isso também seja importante. Contudo,
a escola não pode ser o lugar onde se reafirmam as diferenças sociais
pretéritas. Nesse sentido, não se inverteu o quadro em que as escolas públicas
de ensino fundamental e médio são progressivamente sucateadas e escolas
privadas aparecem como a solução dos que podem pagar. Neste aspecto, apesar dos
inegáveis avanços, o Partido dos Trabalhadores jamais teve um plano articulado
para a educação a ponto de assumir todos os riscos que implicariam a revolução
de transformar a escola pública, de fato, em um lugar em que toda a república
se encontra, sem privilégios. Nesse aspecto, diga-se de passagem, é triste que
um dos aspectos mais frágeis da administração municipal de Fernando Haddad seja
justamente a educação, claramente uma área que não tem um projeto articulado,
audacioso, ou inovador como o reservado a outras pastas, como a mobilidade por
exemplo. É uma pena, pois Haddad foi um bom Ministro da Educação, ainda que
dentro dos limites descritos acima, e é, certamente, um dos quadros políticos
mais promissores do Brasil. Mas aceitou, diga-se de passagem, entregar
justamente a educação ao PMDB.
Não dar à educação o lugar central de uma revolução
social no Brasil pode ter sido o maior de todos os erros da administração
petista. Ao permitir que a escola pública brasileira de ensino básico
continuasse a ser o pilar de um “apartheid”, que cada vez mais separa na
infância pobres e negros de brancos e filhos de classe média, o PT pariu a
geração de paneleiros que vemos por aí, todos muito ciosos da sua meritocracia
aprendida dentro dos muros de condomínios e de escolas repletas de câmeras e
seguranças. Repetimos, assim, o mesmo papel excludente que a educação tinha no
Brasil no século XIX: antes de tudo, era o processo de formação da elite
dirigente. Chegar a deputado ou ministro tinha como ponto de partida, entrar
nas escolas de Direito de São Paulo ou Recife, transformadas em mecanismos de
reprodução e reafirmação eterna dos mesmos grupos dirigentes, inclusive
amalgamados e uniformizados pela educação escolar.
Em razão disso, não é surpreendente que o governo de
Dilma Roussef tenha sido alvo de oposição e, algumas vezes de perseguição
sistemática de alguns órgãos ou grupos da elite do funcionalismo público
federal. O PT, assim como os Luzias no século XIX, foi governo, mas jamais teve
o aparelho de Estado na mão, nunca conseguiu fazer com que a máquina comprasse
um discurso mais inclusivo. Mantidas as situações atuais, teremos juízes com
boa formação, mas insensíveis às razões sociais. Médicos mais preocupados com
suas questões coorporativas do que com o fato de existir um contingente enorme
de brasileiros sem acesso à saúde. Nessa direção, parece claro que a elite do
funcionalismo público federal foi absolutamente insensível à inegável melhoria
nas condições de trabalho nos últimos anos – inclusive salarial – porque, entre
outras coisas, negava-se a compactuar com um projeto mais inclusivo. O lugar de
classe falou mais alto e, numa sociedade claramente cindida, não é de estranhar
que boa parte desses estratos se identifique com o projeto defendido pelo PSDB,
mesmo que ele seja privatista e favorável a um Estado mínimo. Provavelmente,
trata-se de um caso da chamada “síndrome de Estocolmo”.
O PT não enfrentou a questão da Educação nesta
dimensão, entre outras coisas, porque seria a mais radical revolução
brasileira. E custaria muito, muito dinheiro. Fazer uma educação de fato
inclusiva, significa ter profissionais altamente qualificados, crianças em
escola de tempo integral e reconhecer que os alunos com origens diferentes devem
ter atenção diferente. Uma escola que opta por um sistema sem reprovação, que
deve ser o horizonte a buscarmos, precisa de sistemas de reforço e
acompanhamento para alunos que têm mais dificuldades ou recebem menos estímulos
em casa. Nada mais injusto do que supor que o ritmo de alfabetização de uma
criança cercada por livros e por pais leitores seria o mesmo de outra sem estes
estímulos. Mas a escola pode e deve equalizar essas diferenças pretéritas se
permitir caminhos diferentes de aprendizado, inclusive reforçando aqueles que
têm mais dificuldades. Caso contrário, as desigualdades só tendem a aumentar.
Enquanto isso não acontecer, nossas universidades
continuarão sendo réplicas dos cursos superiores do Brasil no século 19: o
encontro de uma mesma classe social, muito bem treinada, capaz de sair-se bem
em qualquer teste seletivo, mas absolutamente incapaz de entender o país. As
cotas, que devem ser acompanhadas de sistemas de apoio aos ingressantes (algo
que os governos não fazem e, com isso, ajudam a aumentar a evasão), hoje
tornam-se urgentes e necessárias. De modo geral, discute-se a importância e o
impacto do curso superior para a vida desses meninos e meninas. Isso é claro,
mas penso que hoje as nossas Universidades precisam ainda mais deles do que
esses meninos e meninas de nós.
É lógico, no entanto, que reconheço os avanços dos
últimos anos, ainda que muitas vezes eles estejam mais amparados em outras
políticas sociais do que propriamente em modificar a escola. Lembro, por
exemplo, da primeira viagem que fiz ao interior do Amazonas, há dez anos. Lá os
moradores estavam no auge uma polêmica: desde sempre as crianças, ao atingirem
um corpo mínimo para o trabalho, antes dos dez anos, partiam para ajudar os
pais na roça, deixando a escola. O Bolsa Família impôs a pais e mães um dilema:
o pequeno valor da bolsa era equivalente ao que se conseguiria com o trabalho
infantil, mas aceitá-la e não obrigar as crianças trabalharem não os fariam
adultos vagabundos? Esse raciocínio que nos parece absurdo era um dilema
sincero daqueles homens. Só pouco a pouco aquelas crianças foram libertadas do
trabalho. Talvez por coisas desse tipo não vejamos mais na TV ou em capas de
revista as famosas fotos de crianças trabalhando em carvoarias, algo
extremamente comum na década de 1990. Mas, claro, essa é uma mudança difícil de
sensibilizar o grosso da população das nossas áreas urbanas.
O significado do PMDB
No plano político, por sua vez, o Partido dos
Trabalhadores se submeteu a outra cláusula pétrea da Nova República: esteja
quem estiver na cadeira de presidente, quem manda é o PMDB. Às vezes,
coincidentemente, o presidente até é do PMDB.
O PMDB é mais do que um partido. É um projeto político
que não necessariamente é tocado por ele, mas por agremiações que fazem a sua
vez, de tempos em tempos. Na era FHC, por exemplo, o então PFL foi o PMDB da
vez. Kassab e o seu PSD tentou, no início do segundo governo Dilma, ser o PMDB
a partir de uma série de deserções que então se contava que eram estimuladas
pelo Palácio do Planalto.
Mas, reconheça-se, ninguém consegue ser melhor o PMDB
que o próprio. Chamado, assim como seus congêneres, de partido-ônibus,
federação de caciques etc, o PMDB é, na verdade, a expressão mais genuína dos
poderes locais do Brasil. É nele que resistem personagens que retiram de seus
Estados ou municípios a sua força, muitas vezes sem alcançar projeção nacional.
Ao aceitar o chamado presidencialismo de coalisão, o
Partido dos Trabalhadores também teve que se submeter a esse casamento forçado.
E, diga-se de passagem, acabou ressuscitando personagens que pareciam
proscritos. Talvez o maior exemplo de todos seja José Sarney que em algum
momento foi o fiador da estabilidade de boa parte do Governo Lula no Congresso.
Críticos ao PT sempre recordaram-se dessa imagem constrangedora, mas
esqueceram-se que todo o presidente nos últimos trinta anos teve um oligarca
pra chamar de seu, quando não era ele mesmo o residente do Palácio do Planalto.
Fernando Henrique jamais poderá se desvencilhar da atuação de Antonio Carlos
Magalhães, por exemplo.
Chega-se aqui a uma síntese bem brasileira: os poderes
locais se reinventam perpetuamente e encontram maneiras de chegar ao poder
central através do parlamento. Em Brasília, dentro do jogo político atual, é
impossível governar sem alianças com esses poderes locais, quase unanimemente
conservadores em relação aos costumes, frequentemente dependentes de benesses
do Estado, mas portadores de um discurso liberalizante. Dessa forma, o PMDB e
seus congêneres são a expressão mais genuína do conservadorismo brasileiro, mas
ao mesmo tempo conseguem se conectar com o que há de mais moderno no mundo
econômico e do rentismo, no qual aceitam ser seus porta vozes em troca de uma
posição de sócio minoritário.
Enquadrar a situação política nessa perspectiva retoma
uma polêmica de pelo menos dois séculos: para alcançar a construção de uma
nação moderna, o caminho é a descentralização dos poderes localmente? É em
torno dessa disputa que se dá boa parte das encrencas na Argentina do século
19. Esse é o debate fundante dos Estados Unidos e elemento importante da sua
própria identidade. No Brasil, costuma-se entender que o processo triunfante no
século 19 foi o da centralização dos poderes sob a mão do Imperador e
patrocínio dos Conservadores. Mas há um inegável quinhão de prerrogativas e
poderes que permaneceram sob órbita dos elementos dominantes nas províncias,
ainda que pareça ser inadequado ver o Brasil como uma federação no século 19,
tal como propôs recentemente Miriam Dolhnikoff em “O Pacto Imperial”.
Mas a questão que importa aqui é lembrar que, no
Brasil do século 19, os auto intitulados liberais foram muito bem sucedidos no
seu projeto de cravar na nossa ideia histórica que o projeto mais progressista
do Império, o que garantia maiores liberdades, era o que propunha a maior
descentralização política. Foram bem sucedidos, inclusive em tornar quase
inquestionável a associação entre ser liberal e ser favorável à
descentralização política e administrativa. Talvez Sérgio Buarque seja um dos
pouquíssimos autores que questionaram essa associação, lembrando que os
revolucionários franceses investiram em um poder centralizado como a única
forma de varrer os domínios locais que pudessem impedir que as instituições
republicanas fossem uniformes em toda a nação.
No Brasil, como dito antes, a centralização política
dos Saquaremas garantiu a autoridade máxima à Coroa no Rio de Janeiro, mas não
impediu que as províncias tivessem os seus “reizinhos”, sempre ciosos em
garantir as suas prerrogativas de mando e poder. Ao falar sobre a situação dos
indígenas no Império do Brasil, Manuela Carneiro ilumina esta questão: diz que
toda a vez que os indígenas tiveram suas condições de vida reguladas por leis
provinciais, sua sorte foi muito pior do que quando era regida por leis
pensadas na Corte. Afinal, era no interior das províncias que os embates mais
sangrentos entre proprietários e indígenas se dava, sendo os primeiros também
os formuladores das leis locais.
Há uma possibilidade dessa dispersão de poderes entre
as localidades produzir, de fato, mais liberdade, mais democracia e controle
dos cidadãos? Em geral, usa-se o exemplo estadunidense para afirmar que sim.
Afinal, é de fato impressionante a grande autonomia dos estados, contrastando
com uma forte unidade política e um nível de desenvolvimento mínimo comum a
todos os “sócios” da federação. No entanto, é preciso lembrar que, se
dependesse dos poderes locais, a escravidão não teria ocorrido em vários dos
estados do sul dos EUA, ao menos no momento em que ocorreu. A grande tragédia
americana, a Guerra de Secessão, é o exemplo mais radical de uma intervenção do
poder central sobre as localidades.
No Brasil, nesses últimos anos, o poder central não
fez frente aos potentados locais, com raras exceções. E, do lado contrário,
muitas das antigas famílias dominantes nos Estados se renovaram ao lado do
poder central. Temos aí a grande incógnita brasileira: será possível, por
exemplo, chegar a uma educação de qualidade, entregando a administração das
redes a governadores e prefeitos que se negam a pagar o mísero piso nacional
dos professores?
"Amanhã vai ser outro dia
Logo após a votação do impedimento de Dilma Roussef,
muitos se perguntaram: é possível resistir? Como resistir? Vladmir Saflate
poucos dias antes, na Folha de São Paulo, indicou uma direção: a desobediência
civil. Vários outros escreveram nos dias seguintes sobre o direito histórico de
resistir a governos considerados ilegítimos. Isso acontecerá nestes termos? Não
sei. A desobediência civil parece um ato simples, mas não é por acaso que é
rara na história e, via de regra, mortal para os regimes políticos. Na falta de
um Gandhi ou de um Luther King, fica a pergunta do que traduzirá para os demais
esse sentimento difuso de que está tudo fora dos seus lugares.
Além disso, não se trata apenas do mandato de Dilma
Roussef. É preciso resistir a uma onda conservadora, dessas que se espalham
pelo Brasil afora. Na contramão do mundo, não bastavam as antigas pautas como
leis homofóbicas, contra o aborto e o uso de drogas que já são legais em boa
parte dos países tão admiradas por nossas mentes colonizadas. Agora saltam aqui
e ali, leis estaduais ou medidas judiciais que questionam a liberdade docente
para definir suas pautas em sala de aula ou até mesmo o pedido de proibir-se
reuniões “políticas” nas universidades. Com variações, isso é o que se chamou
de “escola sem partido”, uma resposta à suposta doutrinação de esquerda em
livros didáticos e em salas de aula. É curioso que os mesmos que defendem com
unhas e dentes a liberdade de imprensa, não conseguiram perceber que essa vem
da mesma fonte da liberdade de cátedra. A “escola sem partido” é na verdade a
“escola sem política”, uma proposição tão fantasiosa quanto a isenção
jornalística. Toda educação é política, o que não significa e nem pode
significar a submissão dos professores à agenda de uma agremiação política
eventualmente no poder. Contudo, para um criacionista, o evolucionismo, uma
evidência científica, é uma ideia de esquerda corrompendo as mentes infantis.
Nenhuma vitória ou derrota é absoluta, mais uma vez
lembro Pepe Mujica. Há quem veja agora apenas uma onda conservadora
avassaladora e o silêncio. Mas há rebeldia por toda parte. Como entender o
levante dos secundarista em todo o Brasil? Assembleias Legislativas sendo
tomadas, meninos e meninas se deslocando de uma escola para outra, acumulando
contatos e formando redes. Quem os entende? Ignoram os partidos, pregam uma
horizontalidade que para os mais velhos parece utopia, quando não uma bobagem.
Mas terem nascido do problema fundante do Brasil – a educação – torna seus
movimentos dignos de acompanhamento. Além disso, uma presença feminina tão
marcante na organização dos movimentos, demonstra que há algo de novo na praça.
Elas não querem ser “belas, recatadas e do lar”, por mais que lhes ensinem
isso.
Mas a resistência, acredito, também virá de tudo o que
plantamos ao longo dos últimos anos, cada um a seu jeito. Trabalho em um campus
universitário novo, com menos de dez anos. Logo ao chegar, menos de seis anos atrás,
tive uma paixão à primeira vista: um projeto diferente, novo, que incluía
alunos muito diferentes daqueles que tinham sido meus companheiros de curso
anos atrás. Além disso, colegas que como eu estavam começando na carreira,
cheios de sonhos e expectativas. Sofremos um bocado desde então. Como vários
campi erguidos durante o REUNI, padecemos com a falta de um prédio definitivo e
improvisações mil, a ponto de merecer o escárnio de manchetes e destaques em
todo o tipo de imprensa conservadora. Brigamos muito com o governo, com a
universidade e entre nós. Mas há um mês o prédio novo foi inaugurado. Há ainda
muitos problemas, uma obra incompleta no mesmo terreno e toda a sorte de
improvisações que são previsíveis (apesar de lamentáveis e irritantes) nesse
contexto. De toda forma, é visível o impacto que o prédio traz para a
comunidade, como se fosse testemunha de que nós estivemos ali. Como se fosse a
garantia que, a despeito de golpes e contragolpes, agora ficou mais difícil
desmontar esse projeto. Coincidentemente, com a inauguração do prédio do
campus, estou assistindo a formatura da primeira turma que acompanhei desde o
início. Com todas as suas incertezas e dificuldades, tenho certeza de que o
Brasil é um país melhor com esses meninos e meninas historiadores. Essa é a
resistência que eu mais acredito.
A esses meninos e meninas, eu dedico este texto!"
André Roberto de A. Machado é historiador e professor da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
Poema
André Roberto de A. Machado é historiador e professor da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
Poema
As palavras do Poeta
O poeta se vinga do futuro
no
seu pacto de total abstração:
fecha
a porta com cimento, pula o muro
e
segue tranqüilo na contra-mão!
Na
sua fresta de espiar vê o que quer,
sua
trincheira improvisada é segura,
pois
acima de tudo coloca a fé -
de
todas que se conhece, a mais pura!
Não
importa em que lugar agora esteja,
num
quarto cinza alugado ou num palácio,
é
o bem estar no aprender que ele corteja
e
seu tempo corre leve, solto e fácil!
Suas
palavras podem soar diferente,
mas
nessa hora é preciso muita calma:
mesmo
que sejam tolas ou inconsequentes,
adoçam
o coração e engordam a alma!
Expedito Gonçalves Dias
(As Palavras do Poeta - Este poema faz parte do livro "Versos Inquietos - Na Aba da Lua" - de Expedito Gonçalves Dias/Editora Scortecci, 2015. Pode ser adquirido entrando em contato com o autor, via WApp:
+55 35 9 8847 1040)